NOVO CICLO

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A contagem é regressiva e pulsa o coração desejando vida e os poros suam planos, projetos, expectativas. Tudo é prenúncio de novidades. Antes, somos crianças esperando ansiosos e depois um mergulho na novidade do ano, o romper da fita da chegada, aí  então somos adultos novamente celebrando gratos tão somente o estar e uma onda de fôlego novo no ar.
Além dos novos ciclos meu renovo é diário. Eu me renovo inteira e também por partes, na medida da necessidade também o faço.
Eu tenho de me renovar e não porque ordena o calendário e a meia noite tudo parecerá novo. Eu me renovo porque  é preciso um olhar renovado sobre a vida, porque viver exige, porque os desafios todos os dias o fazem.
Tenho meu jeito de renovação quando o renovar-se continuamente falha. Eu me aquieto por um instante e faço uma pequena prece.  Então paro buscando ouvir Deus. E isso é muito bom. Reparei que esse exercício também me leva a ouvir a mim mesma e isso também tem me parecido bom.
A pouco vasculhava meu interior feito criança fuçando caixa de brinquedos antigos a procura de coisas boas. Encontrei algo velho guardado em um canto de mim. Fiz alguns reparos e vejo que será muito útil para esse novo ciclo.

Já agora sinto o frescor, o perfume e as promessas, é que por causa das crianças tudo é sempre colorido de esperança e tem sabores e cheiros preciosos. Feliz 2012!


                           

OLHAR II

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Passei  uns dias de relógio de Dali, liquefiz-me. Passei uns dias eternamente indo, sem ter, sem como e principalmente sem o porquê. E conheci uma solidão acompanhada e desatenta.
Havia o tempo, o espaço, mas de nada eram e a tudo preenchiam. Havia a consciência de uma existência se reconhecendo, lentamente, mas enfim, conhecendo.
Eu media as distâncias, aprendendo a medir palavras, eu ouvia o tempo e as suas lições eram escritas na face mesmo. Mas bastaria um olhar mais atento para perceber que faltava um elemento. Bastaria um olhar de cuidado para compreender a essência. Bastaria um olhar, para tocar a vastidão da ausência.
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OLHAR

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Tenho uns planos guardados esperando, esperando... e um vestido de tecido fino, leve como não é um sonho esperando. Mas o vestido já não serve ao sonho e o sonho já nem cabe mais. É que eu quero as coisas mais bobas e possíveis do mundo.
Quem prestou atenção no passarinho abrigado ao meio dia no semáforo quebrado, observando uma nuvém de pásssaros sem asas em estranha sinfonia desafinada?
Aconteceu também de uma caricatura adorável  passar por mim em apuros de cinema mudo,  nessas cenas onde o invisível é tão maior que o visível, mas nem sempre conseguimos alcançar. 
Mas bastaria um olhar mais atento para perceber que certas coisas acontecem com a gente para que melhor possamos compreender o semelhante. Esses dias estou mais apta a entender  as pessoas.
Meu Deus, libertai-me de  buscar o que não é, para que possa me dedicar ao que é e será. Amém.
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NOTÍCIAS

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A tarde caminhava para a noite, e eu caminhava para a vida. Pacífica e calma era a tarde e em nada lembrava os rumores de guerra, a violência dos homens e a fome sobre a terra.
Mas havia a umidade em baixa e um cinza construído, de descuido constituído. E o cinza tingiu o horizonte, abraçou os prédios e pousou no que havia.
De cinza se vestiu o capim estralando securas, mas com a bravura ainda verde que requer a sobrevivência, como a flor insistindo em ser flor, contrariando as circunstâncias. Só a menina tinha a primavera em suas mãos e nem se deu conta.
Distraída, pisei a notícia que já não era nova e empoeirada virava história, e descobri abandonado um segredo alheio que guardei comigo.
Silenciosa me acompanhava a calçada, onde o rapaz conversava com as mãos e sorria com olhos de encanto. E foi sem causar incômodo, que testemunhei um abraço demorado, como quem se perde no tempo, como quem se encontra no outro.
E foi assim, em duas voltas, uma caminhada e um desejo antigo de alongar a existência e não perder nada, ainda mais de uma tarde, que apesar de cinza, cabia esperança.
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DROMEDÁRIO

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A atmosfera no trânsito é feita de combustão e pressa, e um ruído, como se tudo fosse urgência. É um intenso, um imenso mar de máquinas inquietas e rotações de imprudências. É um risco, um estalo, uma seta envenenada de descaso.
Hoje vi uma campanha estampada em um ônibus “ Motorista proteja o ciclista”.
No que vi, senti que era de uma grandeza e de uma beleza triste, porque ainda é preciso que se rogue por respeito a vida.
No retrovisor, um carro e outro carro e surge um dromedário volante no asfalto. Adiante, em frente a esteira onde passarela a vida, ergue-se rígida uma flor de aço, de uma candura fina e estática, ornando o dia e iluminando os passos da noite. E ainda, o assombro, um susto; o motoqueiro e seus malabarismos entre dois carros retorcidos.
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PREGUIÇA


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Hoje é domingo, não peço cachimbo de barro, nem jarro de ouro. Peço mais meia hora na cama. Quero aproveitar o temperamento do meu planalto, que hoje deu a soprar um vento seco, meio frio meio quente,  entrando matinal pela minha janela, como que um duelo entre o inverno e primavera ou coisa como se outono e verão não suportassem o tempo da espera. Coisas do planalto.
Então, vou aproveitar que por hoje tudo é domingo, pra largatear na cama por mais meia hora. Vou deixar estar cada minuto dos trinta que me dou e espreguiçar bem e demorado, como um bom domingo merece, e depois, depois uma prece.

Tomar café só mais tarde e mais tarde também os afazeres, porque apesar de ser domingo, a gente sempre tem. Mas por agora, me jogo inteira na cama, afundando em preguiça dominical, por mais meia hora. Amém.
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UM DIA

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Um dia, quando pensei que era o fim do mundo e o fim de tudo, acordei assustada com um diagnóstico como quem se apavorasse com um telejornal avisando da bomba atômica. Fiquei atônita e silenciosa. E não podia fazer alarde e a culpa era de ninguém. Não chorava pra não avaliar ainda mais a delicada imunidade.
E pensando que era o início do fim, percebi que havia acontecido o início de tudo e todos para mim, porque  quando as perdas são irreparáveis é que o valor que cada coisa tem se sobre sai. Foi a partir de então que o dia amanheceu ainda mais belo e desejável e a noite escura, fria ou quente, era a mais linda que havia. E já não irritava o trânsito externo e o metrô em seus trilhos de ferro e nem tão pouco as marteladas da civilização. E era como música as crianças em gritos de vida no parquinho do prédio.
Em dias em que tudo pareceu-me tão grave, a graça ocorreu com mais facilidade e a tolerância tornou-se um patrimônio valioso. Quando os dias futuros se mostraram assim, inatingíveis, caminhar foi uma forma de buscar alongar a existência e não desejei coisas e marcas ou sucesso, só e apenas uma oportunidade.
Um dia quando pensei que era o fim de tudo e esse tudo era o meu mundo, testemunhei como testemunhamos todos os dias o sol nascendo e alargando seus raios em abraços calorosos, o reinício da vida. Da minha vida.
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MEDIDA

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É quando me dou a certas percepções secundárias que deixo as coisas importantes em desordem verdadeira. Há tantas coisas que não são de todo importantes. Importante é o café posto à mesa, a lição de casa e a benção diária. Mas percebo também o amparo que significa, porque preciso do pão, da lição e da benção. No entanto, a porção que me dita também necessita do não importante e isso implica intenção, doação, entrega, do que hoje sou escassa.
Mas há de se ter um tempo e dentro do tempo um caminho. Afinal, não é bem assim a vida? Fazer caber dentro de uma medida uma imensidão que não se explica. Que nem o coração que dentro dos seus limites acomoda tanto amor que não se imagina.
Mas já agora vou ser bem prática, então é assim que fica: o importante vem primeiro e o menos importante, mas intimamente necessário, deixo por derradeiro... assim diz a sabedoria.
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INSTANTE

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O momento que se chama agora, é o mais importante da vida. É tão breve, mas posso tocá-lo, é tão comum que posso ignorá-lo, é tão precioso, mas acontece de desperdiçá-lo. Mas não deve ser assim. Esse momento, é especial, pois nele contamos nossa história, escrevemos nas linhas do tempo e memória.
Eis uma bela forma de viver a vida, celebrando cada instante. Não, não é o caso de viver alienado, é o caso de viver de verdade. Não se trata de viver sem planejamento ou de abandonar o passado, mas sim de saber dosar a existência e isso se aprende com algum esforço.
O agora, normalmente é tratado sem muitos cuidados e empurrado pela força de ansiedades futuras. É assim que perdemos oportunidades ímpares de ser e fazer aqueles que nos rodeiam mais felizes. É assim que deixamos passar aquela palavra necessária, o apoio que alguém esperava e o favor que outro alguém nem esperava.

O presente pode estar embrulhado com laços e fitas ou não, mas de todo é uma dádiva. Saibamos vivenciá-lo, saibamos percebê-lo com o zelo necessário, com um sorriso, um afago, um abraço camarada e um olhar inovador sobre uma rotina caduca.
Usufruir deste presente do presente é colher da plantação de presentes passados e lançar a semente para presentes futuros. Que se tornem referências os ensinamentos do agora, lições que nos farão melhores, mais criativos e pacientes.
Minha oração é que neste presente, eu não me ausente, eu não me perca em buscas e lembranças que me amarram ao passado, que eu não devaneie em ansiedades futuras, mas que eu sinta a beleza de cada momento, do mais simples e rotineiro ao mais intenso e desafiador. Que a oportunidade de ser e construir algo melhor, instante a instante, seja abraçada por todos nós, agora e sempre. Amém.

PERCEBI

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Agora que tenho em mim as marcas da urgência da vida, me apego ao ser e estar e reunir e valorizar. Agora o minuto não me escapa e aprendi a ser toda ouvidos.
É que por tantas vezes queremos corrigir defeitos próprios e alheios que excedemos na borracha e apagamos traços importantes de conexão nos contornos da vida, e daí a própria convivência. Quem não convive não toca. Ninguém quer ou pode estar sem ser. Se uma das buscas da vida é o ser aceito, eu aceito ser e deixar ser. Eu aceito amar simplesmente por amar.
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BLA BLA BLÁ IV

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Ai que tenho um defeito esquisito, por ser defeito já se explica o esquisito, mas assim deixo para enfatizar. Eu sei que todo mundo tem defeitos, a perfeição é uma busca. Poucos a alcançam em algum momento da vida. Acho que é aí que se fazem os gênios, os santos.
Sou apaixonada pelo que é bem feito, perfeito, admiradora eterna de todos que ao menos em uma área da vida o experimentaram. Não estou falando da perfeição como a de Deus. Essa, por certo não se alcança. Mas falo da perfeição de um caminho correto, de escolhas certas. Do belo da arte, da maravilha de uma música clássica, e da ternura de uma bela canção de amor. A salvação da descoberta de uma vacina, do milagre cotidiano de um sorriso amigo. Amo a perfeição das metas alcançadas. Das boas metas, objetivos cumpridos. Por exemplo, as formaturas, isso para mim é o evento de uma vida, e não me lembro de ter participado de alguma sem que estivesse em lágrimas. Vejo nestes momentos, o resultado de um sonho, que não é como nos contos de fadas, mas sim alcançado com suor e lágrimas e cansaço e dedicação. É o encerramento de um ciclo maravilhoso da vida e acima de tudo, a largada para um futuro a ser construído e ainda a vontade de fazer diferença no mundo.
Mas voltando ao ponto de início, meu defeito que aqui compartilho e caso alguém sofra de tal mal, saiba que tem um semelhante sobre a face da terra.
Repare que investigando esse mal, em algum momento acreditei eu tratar-se de algum complexo, pois já de início preciso ficar atenta para que não se manifeste. Mas em outras avaliações, diagnostiquei como um lapso de contexto, mas não encontrei estudos que fundamentassem minhas suspeitas. Pensei até mesmo em barreiras psicossomáticas de relacionamentos... ham? quê ???. Enfim, fui percebendo aos poucos, que trata-se mesmo é de excesso de sinceridade e quando vejo o estrago já foi feito. Mas desde já adianto, nada premeditado, é espontaneidade demais e acrescento, à medida que avança a idade, o problema se agrava. Vejam que esses dias, falei para um poeta que eu não entendo nada de poesia. Acho que foi só insegurança. Claro que ele nunca mais puxou assunto comigo. Contei pra uma amiga um barraco que aprontei na rua, aí ela tomou doriu. Falei pra um rapaz que ele tava com caca no nariz. Ele saiu correndo e nunca mais voltou, quer dizer, nunca mais voltou ao normal. Claro que aqui digo apenas as coisas bobas, porque as sérias... Sobre as coisas sérias ainda não escrevo. Mas creiam-me sou do bem, só às vezes é que não me saiu tão bem assim.
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Sobre o inverno e eu


É vestida de outono que recebo mais um inverno. E há previsões de madrugadas geladas. Não sou do frio, o inverno me intimida, mas é encarando sem medo seu olhar gelado, que passo por ele como quem vence os dias cinzas. Não como os que se sentem bem com as baixas temperaturas, mas acho que é porque sei dos desafios e ajo assim, enfrentado limites de nariz vermelho.
Quando criança eu tinha umas crises de frio, inexplicáveis. Sentia tanto frio, sem que necessariamente estivesse tão frio assim, que às vezes era preciso juntar os cobertores da casa para eu me sentir aquecida. Em certas ocasiões, só passava mesmo com o agasalho quente do abraço de minha mãe ou a irmã mais velha. Talvez porque eu era tão magrinha que a pouca gordura que havia, não fosse suficiente para a manutenção da temperatura corporal, ou quem sabe, apenas artimanha infantil, inconsciente, em busca de carinho. A mente e seus rodeios e o corpo buscando formas possíveis de tradução...
Há muito charme no inverno e um cheiro de naftalina no ar. Mas há um perigo a espreita. E não é de gripes e resfriados, embora sejam iminentes. É que a minha fome se agrava no inverno e só passa quando passa a estação. Então vou subtraindo os excessos com alguma caminhada. Mas não deixo de exercer meu direito a um bom chocolate quente quando bate a vontade.
Porém, não é apenas de frio e fome que é feito o meu inverno. Sinto algo mais, e sinto muito, que a nossa humanidade não seja suficiente para agasalhar a todos que a todo esse frio sentem. Espero que nosso inverno seja repleto de atitudes calorosas. E que de cada armário farto e que de cada coração grato venha o suprimento que cubra de calor humano e agasalhos ao necessitado. Atos, ação é o que aquece de verdade o coração.
Meu inverno é assim, o que se espera, uma luta dentro de mim e fora uma vitória diária, sair da cama quente e viver cada instante com esperanças de primavera.

REFÚGIO

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Fiz para mim caminhos, em um deserto aportei. Por fora eu flores e rios, menti. Em meu interior o ermo silencioso se alastrando em devastação.
E quando o fim era o meu destino, eu vi, fez-se o início, pois Teu rio de águas vivas inundou a amplidão dos meus caminhos tortuosos a aridez de toda transgressão.
Fez-se árvore, frutos e sombra, ao entrar no teu descanso, floresceu em mim jardins. A abundância dos Teus rios tragou o ermo, curou-me enfermo e trouxe habitação, pois da Tua palavra emana a promessa, a restauração e a vida plena.

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SOBRE ANIVERSÁRIOS

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É que dá uma vontade de festejar a vida, de comer bolo com refrigerante sem se importar com as calorias, de receber flores do campo, colhidas na floricultura do bairro mesmo, de perceber aquela movimentação de última hora de alguém que ainda pensa em fazer surpresa de última hora, faz parte e é um barato... é dia de cantar parabéns pra você de pijama ainda na cama, rodeado por quem a gente ama.
É que só dá pra agradecer pelas oportunidades, pela família, pelos amigos.
É dia de orar baixinho, só você e Deus e um coração repleto de gratidão e alegria.
É dia, é dia, é dia!!! é hora! é hora ! é hora !!!! HÁ TIM BUM!!!!
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EBULIÇÃO

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Como posso explicar o que sinto? É mais ou menos isto: um misto de amor, bravura e ternura, que se amplia, expande, alarga. Irradia em escala materna. Uma energia poderosa, por vezes contagiosa.o

BLA BLÁ BLÁ III

Escrevo vez ou outra, mas gostaria de escrever sempre, não por literatura, mas como quem ainda nutre curiosidade sobre a vida. Como quem espia o mundo e rabisca impressões.
Procuro uma palavra que corresponda a um sentimento, mas às vezes elas me faltam, também pudera... eu as compreendo. Sei que falhei com elas. Talvez por isso essa ausência, esse distanciamento, afinal é amando que se é amado.
Mas queridas, não pensem assim de mim, hoje eu sei o quanto vos amo, na verdade sempre soube, tanto, que tantas vezes adormeci abraçada em comoção a livros de pessoas que tão bem souberam colocá-las e declaro aqui o meu amor por vós. Se vos faltei foi porque me perdi entre os números com suas fórmulas e sua aplicada lógica. Mas isso me foi necessário, até ao ponto de exigir coragem.
É fogo essa vida que é toda feita coragem. Coragem e fé. Porque sem a fé necessária, é difícil dar um passo após o outro. E passo por esse mundo de meu Deus, com essa inquietação que não passa, de tentar compreender as coisas intangíveis do universo que somos nós.
São nessas tentativas que ainda me deparo com espanto com uma certa dificuldade de natureza pessoal, não muito grave, mas existente, insistente. Olha só que tentando compreender o amplo, o infinito, caio dentro de mim mesmo, o grão, a partícula. Então como se explica, fui tão alto que esmiucei o mistério do qual sou parte? Ou, nem saí do lugar e só alcancei a mim mesma? E pouco ou nada desvendei, eu heim ...

Há... mas vá lá querer compreender o homem, vai lá querer compreender a alma humana, dessa espécie que pode ora transbordar e ora mostrar-se um imenso deserto, pode parecer cheio de tanto e tanto ser oco dentro e pode ainda estar solitário em meio a multidão.
Há... vai lá querer ir tão fundo em si que até dá dó. Tenha dó Simone!
Então me ergo, e percebo que sinto, logo existo, e isso faz parte do ato de viver. O que não pode ser é sucumbir e se deixar vencer. Porque viver é isso, é se dar conta de tantas limitações e imperfeições, mas não se deixar abater, é gerar soluções, buscar saídas. É reconhecer as fraquezas e ainda assim tornar-se mais forte. É viver a realidade, mas nunca abandonar seus sonhos, jamais
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Uma solidão
Que não é feita de tristeza
Uma imensidão
Onde não cabe a estranheza
Apenas eu
comigo mesma

a
preciando
pequenas delicadezas
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EXPEDIÇÃO II

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Tem umas coisas que agente aprende e não esquece mais. Tem certas coisas que adentram nosso ser, permeiam nossa história e grudam em nós e nós nos apegamos a elas. E falo de coisas simples, coisas singelas que passam despercebidas na grandeza de tantos outros fatos na nossa vida, da nossa trajetória.
E vejam só que um dia, mais um desses dias perdidos no passado, agasalhados nos cômodos da memória, aprendi algo que achei simplesmente bonitinho; mas bonitinho assim, de perfeito, de tocante, de encantador. Só não me lembro quem me entregou essa preciosidade, mas agradeço imensamente pelo grandioso ensino que guardo até hoje. Trata-se de uma expressão, mais conhecida nas cidades do interior, acredito eu. É o "caminho do lá vai um", ah, eu sei que até soa bobo, mas é que eu sou assim mesmo, boba, bobona e tem umas coisas bobas que me comovem.
Foi realmente, não minto, uma grande descoberta pra mim saber que aquela estradinha desenhada no mato de tanto a gente andar é o caminho do lá vai um.
Quando criança, mesmo andando em bando no cerrado, colhendo as frutinhas do mato, quando aparecia a estradinha, não tinha jeito, era fila indiana mesmo, e lá vai um!
E lá vai mais um, atrás das frutinhas do mato. À medida que íamos passeando, brincando, explorando a imensidão da nossa infância, íamos também experimentando os sabores que a natureza nos disponibilizava. E essas frutinhas, são achados maravilhosos. Eram como delícias disponíveis em um pomar, sem cerca, sem limites e sem dono. Era de todos nós.
Sei que muitos não desfrutaram desses prazeres, mas eu e meus irmãos sim, claro que sob a consultoria da minha mãe, que entendia muito das plantas do cerrado.
Será que alguém aí sabe o que é o sangue de cristo? Dessa provei muitas vezes. E a bananinha? Azeda!!! E o talo do coquinho do mato, delícia! De algumas flores sugamos quase que mel! Ah, era tudo uma grande aventura.
E tem algo ainda muito interessante, mas não é de comer, é de ver e sentir. É a "Maria Fecha a Porta", uma plantinha sensitiva, conhecida também como planta tímida. Gente, mostrei pra Lulu uma que nasceu aqui perto de casa, ela ficou muito emocionada. E como, como não ficar? Não tem como não se emocionar, vendo a plantinha tão educada e tímida fechando suas folhas após um toque, como mãos espalmadas em prece, ou uma janela de dois lados... aquelas que deixam as casas com cara de poema.
Tem umas coisas simples que agente não esquece. São essas coisas, que eu não quero esquecer, jamais.
Agora, todos os dias a caminho da escola, a Lulu passa pra ver a Maria fecha a porta.o
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SOBRE(VIVÊNCIA)

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O cinza da manhã fria
atravessa a retina

desafia
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e ao contrário do que se imagina
tinge-me por dentro
de ensolarada
alegria

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MENINICE III

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entrego-lhe uma pequenina pedra colorida em tons de verde, ela olha admirada e diz que é linda, tão linda quanto suas pedrinhas marrons, e agradece. Então, lembro-me que a menina era assim mesmo, encontrava beleza em tudo a sua volta. Era da pureza do seu olhar que fluia a beleza da vida, das coisas raras, das coisas simples.
Mas o que é que a vida vai fazendo com a gente? Mas o que é que eu deixei a vida fazer com a menina? Em que esquina eu traí essa percepção do mundo que não eleva nem diminui, mas iguala no melhor de cada um. Que não exclui, antes, ajunta naturalmente e é feliz.
Eu me recompondo, alinhando o pensamento, amparando uma lágrima a tempo da queda, pego na mão da menina. Ela me convida pra conhecer sua cidade de pedras. Passo pelas ruas cuidadosamente planejadas, há uma praça no centro da cidade e no meio da praça, há um jardim. Ah, o jardim de flores e folhas colhidas dos canteiros da mamãe. E não me lembro de broncas por retirá-las. Eu não sei se a aborrecia, mas vejo a menina orgulhosa do perfume exalando do seu jardim.Enquanto isso, meu pai passa urgente à margem do seu pequenino mundo. Ela tenta lhe mostrar seu trabalho, mas ele somente acena e passa grave e mais urgente. Eu sei que depois, logo depois, ela vai saber da sua pressa e desatenção e vai entender. Ela vai saber entendê-lo.Ainda segurando em sua mão pequenina seguimos. Viramos em uma esquina, ela olha pra mim e sorri. Mas eu reconheço este caminho, eu sei o seu percurso e o seu fim. Vejo uma escolha difícil, uma experiência ruim. Então me antecipo e impeço que ela continue, puxando-a pela mão a faço regressar. Voltamos ao jardim da praça.
Ela ainda pensativa me convida pra sentar ao chão e  serve-me um chá de faz- de-contas com biscoitos fresquinhos de terra vermelha. E o faz sem se dar conta de tamanha doçura, da tamanha riqueza apesar da pobreza em que vivia. A menina era mesmo assim. Ali, olhando em seus olhos  lembro-me claramente que algumas experiências ruins foram como vacinas e preveniram dores maiores, angústias sem fim.
Se eu pudesse voltar no tempo, o que faria diferente? Não sei, não sei. E o diferente aonde levaria a menina? Não sei. Então, eu beijo a sua face, lhe faço um carinho e parto. E deixo que a menina siga o nosso caminho.
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MENINICE II

Estou pequenina em mim mesma cultivando um egoísmo íntimo e certamente indivisível. Só compartilho sua existência como quem obedece com certo emburramento infantil, porém com respeito a um mais velho, para fins de registro diário. Para que não se perca na diversidade e acúmulo dos fatos.
Mas sua natureza não é malévola. É até benéfico, no sentido de que não há gravidade neste sentimento. Trata-se de bobas questões pessoais incompartilháveis, porém apaixonantes. Meus segredos comigo mesma, com juramento de mindinho e demais convenções dos tratados e códigos dos segredos, tão bem conhecidos pelas crianças. E por aí, muito já denuncio.
O que ainda posso dizer sem muito expor, é que todo mundo alimenta dentro de si uma criança entre seus cinco e nove anos de idade, uma princesa ou um super herói. Alimentamos essa criança necessária que nos habita com lembranças de afagos, histórias, coleções de figurinhas, papel de carta, miniaturas, bonecas rabiscadas e tantos outros objetos portadores de porções da nossa infância, da nossa essência. Significados lúdicos eternos que nos fazem regressar e ver-nos em cenas tão reais da nossa meninice, como se fosse o agora.
Quando volto a um certo dia da minha infância e me vejo ali no quintal enorme, o enorme da memória, cercado por pés de Adália, eu construindo uma cidade com pedrinhas enfileiradas. Quero chegar perto e ajudar a menina. Quero buscar as pedrinhas que estão longe, as falsas gemas, os falsos diamantes que ela colecionava na gaveta da estante. Quero encontrar uma que seja rara e trazer para menina que brincava de construir em uma tarde cinza, sozinha, enquanto seus pais brigavam.
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DOS CONSELHOS QUE NINGUÉM PEDIU - I

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Gente, o sonho não acabou, as coisas é que mudaram de lugar. Por isso o estranhamento, o não reconhecimento. Na convivência a gente se esbarra, perde a fala, faz e desfaz a mala. Se fadiga pra conquistar, alcançando e traçando novos planos. Aí vai ficando mecânico, seco, sem brilho e tudo a sua volta, cinza. Mas não foi assim o combinado pra toda uma vida.
E sabe de uma coisa séria e linda? O tempo passa, mas o coração não desvanece, continua sempre esperando flores na janela, café da manhã com promessas e cumplicidades ao anoitecer.
Então, faço como quem aconselha o que deveras anseia. Falo como quem defende que conselhos podem ser bons, mesmo que nada custem. Mas se de todo, julgá-los fúteis, altamente inúteis, não despreze totalmente. Creia-me, há futilidades que se provam essencialmente úteis.
Primeiro, dá folga pra TV, organiza seu tempo ao computador. O tempo é um recurso escasso, por isso vale tanto o tempo ao seu amor dedicado. Procure assistir através dos olhos um do outro o filme mais importante, o filme das suas vidas, em plena fase de produção. E você é o roteirista, produtor, diretor e principalmente o ator. O sucesso está em suas mãos. Lembra quando olhando no olhar, já se entendia tudo? E o tudo cabia no instante desse olhar, lembra?
Faça um carinho, mesmo que apressado, quando passar um pelo outro nos trâmites da casa. Um cochicho ao pé do ouvido nos encontros de corredor. Beijos sem nexo, inesperados, embalados de surpresa, lembra tanto namoro, e namoro rima tanto com renovo!

Abrace muito, mesmo que sem motivo. Mas há sempre um bom motivo para um abraço afetivo. E garanto instigados os sentidos.
O humor também derruba muros, abre brechas nas camadas impermeabilizadas dos sentimentos. Então vai, conta aquela piada engraçada. Mesmo desbotada, desgastada. Conta de outro jeito, inventa outros trejeitos, só de pretexto pra compartilhar. Rir é tão bom, às vezes até dos próprios defeitos. E cura, se feito com ternura.
Ah! Quando acontecer uma discursão, que é humano, e for inevitável, comece assim: Meu amor...
Que tal ainda, trabalhar duro por um tempo sem fazer nada, caminhar de mãos dadas, transpor caos e dilemas: da fadiga, do orçamento, da desordem das crianças, dos conflitos nacionais, internacionais, enfim qualquer caos estabelecido. Dê a convivência maior sentido, pra fazer a vida valer a pena valorizando as coisas simples, as coisas pequenas. Valorizando sempre a quem se ama. E não se esqueça de dizer isso! É fundamental. Se já perdeu o jeito, treina! Lembra quando de tanta falta de jeito e ansiedade, ensaiava-se primeiro o que falar antes do telefonema, lembra?


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DAS FIGURAS ESCONDIDAS II

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É o seguinte, dependurada na noite, havia a Lua Cheia que a Nuvem Negra invejosa da sua beleza, procurava ocultar. Então, essa briga da vaidade feminina, fazia ter um aspecto de noite de Lobisomem.
Mas que besteira estou dizendo!? Lobisomem não existe! E eu não tenho medo de Lobisomem não, só da Alma dos Três Cabelinhos!  Meu Deus, quem tem medo da Alma dos Três Cabelinhos!!? Só eu mesma. E a culpa é toda da Sandra.
Bom, depois da breve constatação sobre o estado da noite, fui tomar meu banho. Ah, meu banho pré sono, é bem depois disso que eu desmaio na cama.
Mas... ai, ai, ai, lá vem as minhas figuras no box do banheiro...Vou ter que decifrar, ou nem consigo dormir.
Mas, o que é que estou vendo? Pois bem, não! não! Pois mal, é um fantasma e dos grandes!! Mas e agora!? Nem posso correr! Engulo o susto a seco, porém molhada. Calma Simone! Calma! Não é a Alma dos Três Cabelinhos não! Ufa! Pelo menos isso.
Coragem, vou descrever: Havia um fantasma enorme, todo muito branco plasmático, com apenas um olho negro horrendo no meio da face e em uma das mãos segurava uma corda de forma ameaçadora. E reparo que lá embaixo, na segunda porta do box, há a cabeça de um animal. Seria um dragão? Sim, é um fantasma com seu mascote dragão fantasmagórico muito irado!
E eu tremendo, não, não de medo, de frio.
Aí né, só que o olho do fantasma era muito esquisito e a medida que o vapor do chuveiro foi baixando, o tal olho negro foi aumentando, aumentando de tal forma que agora estou vendo mais dois olhos pequenos! Continuo tremendo, não, não de frio, de medo mesmo!
Mas de repente, ouvi um som cortando a noite, epa! Parece um trote:
poco-toc, poco-toc, poco-toc!!
Mas dragão tem casco? E trota?
Que nada. Agora decifrei tudo de uma vez: Era só um menininho brincando à beça, fantasiado de improviso com um lençol branco que o cobria dos pés a cabeça, com um buraco cortado na altura dos olhos para poder enxergar - Bem pensado garoto! E o dragão, não era nada disso. Era só o seu cavalinho com cabeça de plástico e corpo de cabo de vassoura. Quanto a
corda em sua mão, não tinha nada de ameaçadora, era só um barbante para cabrestro. E brincavam com doçura.
Ufa que alívio. Agora já posso escovar os dentes.
Enquanto isso, lá nas alturas, a Lua puxou a Nuvem encrenqueira pelos cabelos, tirou-a da frente e se exibiu por inteiro! Bahh! Briga de meninas!!


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BLÁ BLÁ BLÁ II

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Aprendi a perceber a vida pulsante nos quatro elementos e as tantas possíveis regências. O espetáculo e a discrição. Compreendi a fusão em si próprio, no amor e aonde mais a vida se alastre e renove insistente. Mas é tão alta essa literatura, e tem porte. Porte de Nobel.
No esforço de alcançar eu até fico na ponta dos pés e ainda estiro coluna, braços, dedos e pensamentos, como faz o meu filho caçula tentando a custos alcançar a maçaneta da porta. E ele sabe o que o espera, um corredor livre e repleto de oportunidades, é difícil, mas a visão o anima. Porém, é tão alto esse voo, que eu não posso, não posso.
Ai! que também há a fundura onde me perco, é tão profundo que não volto mais. Mas aprendi algo possível sobre os impossíveis, seja no voo ou nos abismos: Aprendi que se pode ser, e ser livre, assim como sinto, assim como penso, e isso me libertou. E me prendeu. Até que venha o meu corredor de oportunidades.

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BLÁ BLÁ BLÁ

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Leio pouco, mas do pouco que leio vivo. Sobrevivo. Por isso há sempre uma vontade insatisfeita lambendo os olhos diante de uma livraria.
Mesmo dando só pro gasto, me é tão intenso, que sofro. Sofri tanto esses dias, que cheguei ao padecimento. Eu chorei de tristeza. Mas antes, já havia chorado de tanto rir. E quando me lembro, o quanto ri e desejei o final feliz que não veio, não aceito. Sofro, embora compreenda. Sofro como que não entenda. Compartilhei com um conhecido, ele disse que eu entregasse tudo nas mãos de Deus!?
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DAS ANDANÇAS I

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Adolescer em Anápolis... meu Deus que foi com alegria e dor. Que recepção me fez a cidade! Era toda o cheiro, e que cheiro do shampoo colorama de pêssego que havia lá no sobrado da Zenilda. É o perfume que ficou pra vida inteira.
Mas houve a estranheza como quem estranha outro país, outra linguagem. Um estranhamento de cara, cabelos e comportamento das meninas da vila, que também era Formosa, e o choque do meu pequeno mundo P Norte.
Quando cheguei, notei que já se usava maquiagem, e eu que nem parâmetro tinha, sabia que era de forma fina e delicada, mas agredia.
Me agredia o gloss, o baton, as unhas pintadas, os cabelos brilhos, os cachos e os alisados natural, que ninguém diria.
E eu, um espantalho, todo cabelo sabonete e neutrox e kolene quando cabia. E era todo o meu rosto a estampa da molecagem, queimada do sol das tardes em jogos de queimada nas ruas de Brasília. Acho que ainda nem me importava com o shampoo Colorama de pêssego que eu não tinha.
E faço agora a mesma cara de boba-alegre com a qual ando carregando por entre semáforos e buzinas estas lembranças. Mas o engarrafamento e as filas são apenas pretextos do tempo, pois que permitem ao pensamento resgatar a menina.

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OFENSA

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Será que, quando me digo enfadada e suspiro cumprido dizendo que estou cansada, ofendo o lavrador, o gari, a empregada? O reciclador, o pedreiro e tantos outros trabalhadores de duras jornadas? Se ofendo, não é por querer. A gente dá muita volta em torno do próprio umbigo. E em nada justifica a geografia acidentada.
Quando digo que tenho fome, sem o menor pudor da palavra, como se fosse a fome primeira,
fome verdadeira, sei que ofendo ainda mais o que granjeia das sobras seu próprio sustento. O necessitado quando pede, suplica. E não é do jeito que eu imploro suplicante ao meu hidratante que dure mais uma aplicação, e mais uma, até que eu possa repor a fórmula. A banalidade não se explica.
Talvez esse meu cansaço, seja mesmo só o corpo pedindo para es-pre-gui-çar... Assim como quando o corpo tem sede e a gente pensa que é fome. É que o cérebro, faz também as suas confusões. Então, devo comer devagar, devagar, pra não comer mais que a necessidade. Aí, como menos, menos... menos que a vontade.o
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SOBRE
A EXTINÇÃO
DOS DINOSSAUROS,
OU NÃO...

A vida dos dinossauros coloridos era a alegria do bebê que os amava, e o seu mundo, a banheira cheia de água morna. Seu apogeu e esplendor era a hora do banho. É que os dinossauros na verdade eram todos seres aquáticos e sabiam fazer mil piruetas nesse mar sem sal, mas cheio de espumas de shampoo, que não agride os olhinhos do bebê, como cuidadosamente descrito na embalagem. E o menino não tomava seu banho matinal sem a companhia de seus amigos. Há uma coisa importante de se dizer, sobre os homens, tão sem imaginação, com seu olhar rígido e sério, inventaram nomes para os dinossauros que eles não gostaram nem um pouco. Então, Tiranossauro Rex, Rex Diplodocus, Velociraptor , Pteranodon, Elasmosaurus e Brachiosaurus são os nomes difíceis que os homens difíceis inventaram. Mas só o menino lhes sabia o nome certo. E era simples assim como um carinho. Ele os chamava de Au-au. É por isso que eles, só atendem ao menino, que lhe sabe dizer os nomes direitinho.
Nesse ecossistema que o bebê tão bem administrava, havia funções diversas que os Au-aus cumpriam e não só por instinto, mas por amizade. Por exemplo, o Au-au verde lhe ajudava a coçar um tanto de dentes precoces que lhe nasciam de uma só vez, e lhe trazia algum sofrimento. O Au-au amarelo era o chefe do grupo, pois era o que o tinha a carinha mais sorridente. O Au-au verde-misturado, fazia mergulhos acrobáticos, desaparecendo no fundo da banheira para depois surgir na caverna das axilas para lhe arrancar muitas gargalhadas. E finalmente o Au-au Bege com lista azul, que tinha a função importante de entreter o menino ativo, assim disse o pediatra, enquanto a mamãe lhe trocava a fralda.
E o menino foi crescendo inteligente e ativo, como reiterou o pediatra. Então, descobriu logo cedo o segredo do enchimento do mar na banheira e principalmente o seu esvaziamento. E um dia o menino abriu as comportas desse oceano de carinho e pôs-se a brincar de abrir e fechar. Mas o que ele não esperava, é que a sua mãe, que nada entendia da era Mesozóica ou do período Cretáceo, de repente interrompesse o seu banho, levando-o para o trocador. Não, não foi o asteróide que fez dodói nos dinossauros. Foi a mamãe que deixou sem saber, o oceano derramando. O nível da água foi baixando, baixando, a espuma densa ficando por último e os Au-aus assustados e indefesos, nada puderam fazer.
Será que é assim mesmo? A medida que o homem, que também não passa de um menino ativo cresce e se desenvolve, de tanto descobrir e inventar coisas, se impressionou tanto com essas coisas, e brincou tanto com essas coisas que descuidou do mundo?
Mas mamãe com seu instinto materno, recolheu também sem saber, ainda a tempo, todos os Au-aus, lhes fez um carinho singelo e os colocou na bancada da pia para decorar o banheiro até a hora do próximo banho do menino.
E foi assim que eles se adaptam a um novo habitat.

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DE PONTA CABEÇA

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Se de repente eu amanhecer com o senso incomum aguçado? Deixo o comum em casa guardado e corro o risco do caminho contrário, mas seguindo sempre em frente.
E se eu fizer uma escultura com a pasta de dentes? E se eu for trabalhar de pijama? E ao invés do salto, a pantufa? Quem sabe uma divertida peruca.
E se, seguindo caminho, eu quiser passar em uma praça e ler com euforia em voz alta uma poesia? O que você diria?
E se ainda na praça, eu virar Maria cambota, só pra fazer sorrir o menino de botas ? E se eu imitar um camelo, pra alegrar a menina de olhar triste e cabelo vermelho? E se eu der um beijo no guarda de trânsito e fizer cócegas no carteiro?
E se eu plantar de uma vez três canteiros? Margarida, crisântemo e Adália.
E se na hora da fome, eu quiser ir a um restaurante bem chique, o que você aconselha? Eu iria a rigor, mas com coloridas meias. E se à mesa eu dispensar os talheres, pra meter a mão no prato e sugar o espaguete no ato, fazendo bico e dando corda na orelha? Como ensinou minha filha do meio. E se pra fechar o meu dia, eu quiser ir ao cinema assistir um romance fora de cartaz que eu amo demais e já assisti doze vezes ou mais, sempre com uma nova emoção? E se de tanta alegria ao fim da projeção eu cometer a ousadia de ficar em pé na poltrona e aos berros pedir bis, bis, bis !!?
Então me diz, o que você pensaria?, O que você diria? Que sou cafona, maluca ou feliz? É aí? Vai, me diz.



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ESCOLA CLASSE 37

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Da época de estudante, ensino fundamental, ficou a lembrança dos amigos queridos. Com isso vem a tona, alguns sentimentos gostosos de sentir. Alguns rostinhos, ficaram tão nítidos que dá vontade de dar um beijo de saudades. O tempo passa e os contados se perdem. Principalmente pra nós que nos mudamos tanto, em curtos espaços de tempo. Geralmente, havia um problema de família, por trás de tantas andanças.
Então fico imaginando como serão suas fisionomias hoje. Por isso é comum eu brincar sozinha de quem será. É mais ou menos assim: estes dias vi um policial, baixinho, meio barrigudo com cara de invocado, não tive dúvidas, pensei no Serginho. Outra vez, olhei pra uma moça muito simpática, com cara de amiga, sabe aquela cara de gente boa, lembrei da Ivonete, uma das minhas duas melhores amigas na época. A outra era a Geanne, dá até uma alegria escrever o nome delas. Tinham apelidos tão engraçados, mas eu não vou contar aqui, por conta da amizade. Não sei se elas ainda se importam com isso. Acredito que não, e talvez seja este um dos sintomas da maturidade. Fiquei sabendo que a Laudirene, agora é diretora de escola. Sei que deve estar pagando por todo o trabalho que deu pra Etiene, batendo nas meninas na saída do horário. Tem o Divino, que um dia apareceu em uma cidadezinha pra onde havíamos nos mudado. Foi um encontro caloroso. Ele me contou com vaidade adolescente que agora ouvia Ozzy Osborne e kizz. Aí eu pensei comigo, que o Divino, logo o Divino tava endemoniado! Ah, e tem o Luciano, esse era o meu pesadelo. Se vejo um jovem senhor magrelo, branquelo e sardento, examino-o. Discretamente, é claro.
O Luciano me perseguia, pegava no meu pé e encrespava com meu cabelo crespo. Todo dia era um apelido novo, e o último, nem pensem que vou falar, com esse, ele me torturava todos os dias um pouco. Agora aliso o cabelo, até que não fiquei mal. Não, não é por trauma que faço isso, é .... é ... é pra ganhar tempo. Mas na verdade; e eu sabia a verdade, é que o Luciano me amava. Amor de criança, amor moleque, mas me amava. Às vezes fazia-me algumas gentilezas e por vezes demonstrava ciúmes.

Quando eu tinha lá pelos meus dezessete anos, estava estagiando em uma empresa (na verdade eu já era contratada, mas eu sempre quis dizer que estava estava estagiando, acho chic! hahaha! pronto já me realizei) . O Serginho, me encontrou. Eu não me lembro bem como reagi, mas creio que foi com euforia. Ele deu o telefone da empresa pro Luciano, que me ligou em pouco tempo. Parabenizou-me pelo que eu estava fazendo, disse coisas boas e ainda que me admirava. Agora eu só lembro, que na hora, me senti bem com aquela ligação e aí pensei: num disse! num disse que ele me amava! E fiquei me sentindo muito especial. Até que pensei depois que talvez não fosse nada disso. Agora ele já rapazinho e um tanto mais humano, quis ser simpático, provavelmente para aliviar o peso de consciência por ter-me feito sofrer tanto.
Mas o fato, é que sinto saudades de uma época tão boa, desses e tantos outros amigos que guardo na memória, que tenho na minha história. Se um dia na brincadeira, nessa minha brincadeira, acontecer de eu acertar e reencontrar um desses queridos, peço a Deus que seja um encontro tão feliz e festivo, quanto feliz é a minha saudade. Mas sem apelidos. É meu sintoma contrário da maturidade. Mas isso, já é um outro assunt0.


SOBRE AS FIGURAS ESCONDIDAS

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Tenho de criança uma mania, ver figuras ou cenas onde ninguém as vê. Só eu mesma. Assim como nas brincadeiras de ver os carneirinhos nas nuvens. Até hoje gosto disso e me encanta as possibilidades. Mas na verdade, não me esforço para vê-las, é tão rápido, bato o olho em um objeto com algum tipo de mancha ou estampa ou qualquer coisa com formato não muito definido, e pronto, de repente de lá extraio uma imagem.
Hoje eu estava tomando banho e o vapor dágua criou uma forma no box do banheiro, na verdade era uma cena: Havia um velho bizarro com cabelo arrepiado, um queixo imenso afilado e um nariz prolongado e pontudo, como se fosse um bruxo. Com a boca enorme aberta segurava em suas mãos um cachorrinho poodle. O bichinho estava em pânico, pois o velho com seus dentes afiados estava por um triz de devorá-lo. Fiquei chateada com aquele velho malvado, se tava mesmo com fome que fosse comer macarrão, e não o pobre de um cão. Aí não tive dúvidas, precisava fazer algo. Então armei-me com a mangueirinha do chuveiro, que tem como esguicho o peixinho rosa que o Generson presenteou a Lulu. Preparei, apontei e fogo, digo, água na cara daquele velhinho perverso. Só que meu salvamento, não deu nada certo. O jato de água foi grande, no que desintegrei o bruxo, lá se foi também o cachorrinho poodle. Fiquei quase triste e fim.

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SOBRE O MÉTODO II

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Não, absolutamente não sou contra o método. Na verdade é o oposto, eu amo o método que me aponta caminhos mais planos e diversos. Mas, porque amo música, nem assim sei cantar. Não me dou muito com os muito metódicos, talvez, pela minha natureza caótica. Se bem, que meu caos tem lá a sua ordem. Mas qualquer ordem, por mínima que seja, denuncia o meu caos. Às vezes confundo método com rotina, porque eu também amo a rotina. Há os que tem pavor, eu não, eu a celebro, pois com ela sinto-me segura. Segura e feliz, principalmente quando bem estabelecida e produtiva. Essa palavra produção é meio que uma compulsão na minha vida. Não que eu seja muito produtiva, mas é que ela ecoa forte até quando não sou nada produtiva. Conheço pessoas metódicas pouco produtivas.
Tenho minha rotina, e nela incluo minha prece diária. Contudo, sempre procuro ter o plano B engatilhado, caso a rotina não se cumpra, o que me frustra bastante, e irremediavelmente, lança o meu dia a reveria.
Assim concluo que, talvez o meu caos esteja mais ligado as minhas gavetas, cacarecos e minha bolsa, meu Deus! minha bolsa... Por falar em bagunça, acho que essa é a palavra mais honesta, lembrei-me de uma situação de morte, em que se procurava os documentos necessários ao sepultamento, ouvi um comentário: puxa fulana era muito desorganizada! Meu pai Eterno, fiquei chocada! Agora sempre me preocupo com a minha forma badernada de ser. Mas continuando, sei que tenho uma ordem interna bem estabelecida. Sinto isto, em momentos de crise. Parece que consigo ser mais tolerante e razoável diante de questões difíceis, que outras pessoas. Parece também, que por ter contato com o caos, consigo apegar-me a menor possibilidade de ordem, assim tenho esperança. Embora com pouco método, a minha rotina possível dentro do caos me orienta.
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SOBRE O MÉTODO I

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Assunto recorrente pra mim é o tarefas por fazer. Não me queixo das tarefas. Não poderia agir assim, pois os afazeres quase sempre estão relacionados a questões tão importantes da nossa vida, como família, seu cuidado, manutenção, desenvolvimento, aconchego, lazer e até mesmo carinho. Então, não dá pra reclamar das tarefas, seria murmurar contra a felicidade.
O que me queixo mesmo, é da falta de tempo para atender a tantas necessidades. Da maratona louca, que não permite desfrutar com mais calma da companhia das pessoas que amamos.
Uma conhecida me disse, que o Ainstein disse, que a falta de tempo é argumento dos que não possuem método. Quase que um tabefe na cara uma frase dessa meu Deus do céu! Mas fico cá pensando com meus botões qual foi o cálculo matemático que nosso amiguinho usou para chegar a essa sentença, quais foram as variáveis envolvidas nessa equação. Acredito que não incluiu aí, algumas questões cotidianas como as minhas. Claro que vou exigir que a minha rotina seja considerada em tal equação. Porque considero-me uma genuína representante de uma geração que vou chamar aqui de geração S. É que já temos a geração X, Y, Z, W, então agora inauguro a geração S, de Sim. Vou explicar: trata-se de milhares de mulheres como eu, que ainda princesas encontraram aquele príncipe encantado quase perfeito, sem cavalo branco, mas com tanto amor pra dar que não poderiam esperar muito tempo para viverem o felizes pra sempre. Então, casaram-se e foram viver a vida real, com toda a realeza que suas possibilidades permitissem. Assim é que fomos automaticamente promovidas a rainhas do lar, nossos príncipes a reis, os príncipes herdeiros vieram e a administração do reino exigiu todo o tempo e finanças existentes. É nesse contexto, que mulheres como eu, adiaram por anos aquele sonho de formar-se, ter uma carreira, enfim de realizar-se profissionalmente. E agora cá estamos nós, nos virando nos trinta, nos quarenta e até mesmo cinquenta ou mais, se é que me entendem, em busca desse sonho. Só que abraçar sonhos agora, a estas alturas, exige alta dose de realidade e esforço. Uma verdadeira equação matemática, na qual a propriedade comutativa não é aceita, porque a ordem dos fatores, altera completamente os resultados. Uma coisa é conquistar sua formação acadêmica e depois constituir família e outra é o contrário.
Ainstein, sábio que era, saberia criar uma fórmula para equacionar bem essas questões, mas teria que explicar bonitinho em seus apontamentos, como não faltar tempo, quando se somam em uma mesma jornada os papéis diversos que uma mulher desempenha, e no meu caso, insisto: a mãe de três, a esposa do rei , a mulher moderna, a trabalhadora, a auxiliadora pedagógica, psicóloga, a enfermeira, a governanta, gerente de compras, a promoter e encaixando nas brechas até com certo peso de consciência, a estudante. Dadas as variáveis, não iria estranhar se esse gênio, com os seus cabelos ainda mais eriçados admitisse, que o tempo é curto e o método um luxo.
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SOB CONTROLE ENFIM

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Só pra finalizar. Creio que transferir para um objeto inanimado, o amor e apreço que poderíamos dedicar a um ser humano, é bem uma característica dos nossos tempos. Tempo em que a comunicação se expandiu tanto e temos tantos amigos virtuais, que perdemos a virtude do contato. A intimidade mingua quando relacionamos em escala de multidão. Então, é mais fácil ter intimidade com as coisas que nos rodeiam mesmo. Por exemplo, eu converso com um blog, pode!? Pode. Eu falo e penso que ele responde e então continuo esse diálogo-monólogo, meio que terapêutico. Há tempos, há os que conversam com seus próprios botões, há os que conversam pelos cotovelos e os que respondem boa noite pro William Bonner e pra Fátima Bernardes. Há também os que conversam com seus cachorros e juram sinceramente a capacidade de traduzir os latidos. Minha melhor amiga, queixou-se um dia das impossibilidades do tempo e da amizade. Agora ela conversa demoradamente com seus livros de psicologia e comportamento. E eu fico a invejar-lhe por uma saída tão intelectual. Saída pálida de quem falhou.
E principalmente, há quase todos nós, que quando estamos aflitos e solitários, conversamos com Deus em orações e súplicas. E este sim, embora não o vejamos, temos a certeza que nos ouve prontamente.
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SOB CONTROLE III

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E por falar em nostalgia, e ainda falando do meu querido controle remoto, hoje esbarrei a mão e sem querer fui parar na MTV, e estranho... não havia nenhuma diva louca, seminua ou alcoolizada ou seminua e alcoolizada. Estava cantando um negro que até então eu não conhecia e agora não recordo o nome, depois vou ver, com uma voz belíssima e fazendo um som incrível. Fiquei tão feliz cá dentro e curti aquela música como o pessoal da platéia estava curtindo, assim como um momento muito especial. Acho que não só eu me apeguei ao controle. Ele também se apegou a mim. É desta forma que explico que na verdade não fui eu quem esbarrou nele, foi ele quem deliberadamente apontou o norte e quis dar-me esse presente em forma de música. Acredito que foi essa mesma música que desencadeou em mim uma nostalgia meio fujona. Tive uma vontade boba de estar em um shopping... qualquer um... Não, talvez o Park Shoping não fosse uma boa opção. Quem sabe o Terraço, que é tão mais tranquilo. Lá eu gostaria de assentar-me calmamente em um café que fica próximo à praça central, onde os pais levam as crianças pra brincar. Então, pediria um refrigerante tipo cola com limão e leria com imensa ternura alguma coisa do Neruda. Assim, me sentiria um pouco participante de um tempo e um mundo que há muito não tenho mais. E nessa minha visão, minha vida estaria de tal forma bem organizada, que eu não precisaria ficar aflita olhando para o relógio e correndo com tantas coisas ainda por fazer. E não me perdoaria sair sem comprar um Coldplay. Eu sei que é bem atual, mas é que me recorda uma saudade feliz de muita coisa que ainda não fiz, mas sonho muito em fazer.

Mas por fim, talvez tudo isso seja mesmo só reflexo de uma semana que foi pedreira: o Generson fez uma pequena cirurgia, o Dan fez sinusite, a Louise otite e a Camile rinite. Eu quase fiz enfermagem. Mas graças a Deus está tudo bem. Amém.



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SOB CONTROLE II

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Não, isso de se apegar a um controle remoto sobrevivente de um grave acidente, definitivamente não é loucura nem carência. Se não me engano, é assim mesmo que as pessoas normais agem. No decorrer da vida vão se apegando a coisas. Vão amando e se comprometendo a ponto de sacrificar tempo e espaço a fim de preservá-las. Sim, eu sei bem que pessoas são mais importantes que coisas. É que estou aqui me referindo ao cuidado, zelo e carinho que temos por alguns objetos que guardam na mais pura essência de ser inanimado, fraguimentos da nossa história, lembranças de pessoas queridas ou momentos importantes em nossas vidas. Guardo uma jarra de porcelana que lembra minha mãe e como ela gostava de enfeitar a casa. Comprei um cd do Balão Mágico de mil novecentos e antigamente por pura nostalgia, por me fazer lembrar de bons momentos da infância e até mesmo para copiar o gesto de minha mãe quando na época comprou um LP pra nós. Assim, vou compreendendo o que nunca havia entendido, porque algumas vovós tem na cristaleira louças que não permitem que sejam usadas nunca, jamais! Acho que é para não apagar preciosas lembranças quando forem lavadas. Dá também pra entender aquele vestido fora de moda, que se insiste em usar, porque o prazer a que se remete vale o desdém dos que não perdoam um erro de escolha. Ah, e não se pode deixar de falar também nos cheiros, nos perfumes e sua capacidade insuperável de despertar em instantes a mais remota das lembranças. E o que mais impressiona é que dependendo do cheiro, pode nos aguçar tanto a memória a ponto de lembrarmos com riqueza de detalhes, sentimentos a muito perdidos no tempo. Cheiro de boneca nova!! Meu Deus, que alegria! Como não ficar feliz e lembrar o quanto a vida é bela e generosa quando se sente um cheiro de boneca nova. Lembro-me de um natal que não havia a menor chance de ganhar presente. Mesmo muito criança eu já sabia. E é assim mesmo quando não se tem. Agente não tem, sabe e fica quieto, não dá chilique, não entra em depressão, a gente passa a compreender mais do que questionar. Mas incrível é que no dia de natal, minha mãe mandou a gente dá uma olhada em baixo da cama. De uma forma que eu nunca soube como foi, haviam pacotes de presentes para cada um dos seis filhos. Eram caminhõezinhos de plástico recheados com balinhas! Foi um dos momentos mais felizes da minha infância.
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SOB CONTROLE

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Observo da minha janela o mundo recortado em losâgulos. Em cada ângulo uma vida e uma avenida extensa a ser percorrida até a estação do metrô. Do segundo andar, vejo as pessoas cumprindo suas rotinas de vindas e idas. E é assim meia que voando em pensamentos que retorno à terra firme automaticamente chamando atenção do Daniel, que tenta mais uma vez jogar pela fresta da rede de proteção da janela, um par de meias. Sim, mais uma vez, porque de outra feita, foi pela mesma fresta que ele tão rapidamente conseguiu jogar o controle da TV, que não foi possível impedi-lo. Sem chances o controle despedaçou-se lá embaixo. Além da queda, ficou submerso em uma possa d´gua acumulada no piso térreo. Então o bichinho, falo assim, porque acho que ele, o controle, reagiu feito um ser vivente, pois assim que foi salvo do total afogamento e tendo sido montado parte por parte, tentou reagir e deu sinal de vida funcionando por alguns instantes. Mas o acidente fora grave e o trauma grande. Então nos primeiros dias pós acidente, nem adiantava pedir-lhe a gentileza de mudar de canal ou elevar e abaixar volume. Não, nada. Assim nos foi exigido o esforço incomum em nossos dias, de desgrudar as nádegas do sofá, caminhar em direção à TV e manualmente realizar as transições desejadas.
Mas como ia dizendo, foi assim, feito gente ferida que o controle foi reagindo aos poucos, bem quietinho na estante. Depois de alguns dias de convalescença, teve sua saúde, digo, circuitos plenamente recuperados, voltando à ativa.
Nossa! Que bom que ele sobreviveu! Bom pra ele que parece muito feliz executando suas funções como nunca. Sei disso, porque agora presto mais atenção. O amor também se dá pela convivência e pela experiência é que me vejo apegada a ele com carinho. Bom para o bolso, diz meu esposo. Bom pra nós que voltamos à rotina da preguiça. Digo nós, mas no fundo no fundo, sei que há a exceção da bunda, que não gostou nada da ressurreição do controle remoto. Sim, porque agora dificilmente terá a chance de fazer aquela caminhada refrescante entre o sofá e a estante.
Quanto as vidas e suas rotinas de idas e vindas... o que pode ser mais interessante e profundo quanto um menininho curioso ao seu modo, descobrindo o mundo?
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SEI II

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o que acho estranho é conhecer tão pouco da pessoa com quem mais convivo, essa que sou eu mesma. Então, vou listando alguma coisa até mesmo a fim de forçar um pouco a amizade, para quem sabe um dia possa conhecer-me de verdade:
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O QUE SEI - LISTA Nº 01 - sei que, ora flutuo, ora afundo. Ora sou ponte, ora abismo. Ora uma bússola, outra a deriva. Ora me dou, ora cobro. Ora sou pouco, ora sobro. Ora colorida, outra monocromática. Ora bem humorada, em outra dramática. Ora dou o braço a torcer, outra torço o nariz. Ora sou triste, mas quase sempre sou feliz.
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O QUE NÃO SEI - LISTA Nº 02 - não sei...O
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DESAFORO

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Acho que não tenho vocação pra brigar e esbravejar com as pessoas e dizer desaforos. Sim, porque me acontece vez ou outra de admirar quem não os leve pra casa. Mas definitivamente não sou dessas. Pois se acontece de eu dizer alguma crueldade que seja, torno-me eu mesma, minha maior acusadora perpétua.
De criança tenho um grande defeito de querer que tudo fique bem o tempo todo. Mas assim não seria humano. As pessoas erram, se estressam, contestam e perdem as estribeiras. Assim como também se acalmam, voltam a trás e pedem desculpas, ou não. Mas o fato é que mesmo adulta, sofro ainda muito desse tipo de conduta. Não é que eu seja fraca, muito menos covarde. Se tem algo que dou muito valor é encarar a realidade de frente. Nem tão pouco que seja o caso de ser santa ou boba. Sim, porque já desci dos tamancos e fui ladeira abaixo. Mas é que sempre sinto que não vale a pena o descaso, só pra ostentar o sorriso arrogante dos bons de boca, dos língua afiada.
Isso de dar resposta atravessada, de bater-boca e ficar ou fazer alguém magoado, a imagem que me vem é de devastação, cenário típico da guerra, onde vencer é sinônimo de derrotar, e isso implica em comemorar os feridos que se deixa pelo caminho.
Mas o meu anjo bom que vence quase todos os meus embates, lembra-me como é reconfortante não atear fogo ao pavio só por orgulho, disputa ou contenda e que não vale a pena ferir, se é com humildade que viemos ao mundo, e da mesma forma um dia teremos que nos despedir.
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SEI

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Vivo a escrever coisas do meu umbigo, coisas simples, coisas minhas, coisas tortas... embora algumas vezes lançando o olhar além da minha órbita, diria que, o que escrevo toca outros mundos, outros caminhos, diferentes rotas.
Sei, aqui e ali tropeço, sei que não há genialidade nos meus versos, são apenas suspiros impressos. Sim, eu sei que transgrido e peco, mas essa minha escrita capenga, equilibra os meus temas e por vezes lança luz sobre alguns dilemas.
Escrevendo sigo me conhecendo e reconhecendo a cada linha, cada parágrafo, cada página. Então de maneira intensa e ávida, sinto e sei de forma cada vez mais clara, que tenho impresso no meu ser algo a me conduzir feito uma dança. Talvez essa ânsia secular, que se agarra a qualquer fio condutor de esperança.
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HORA DE DORMIR

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As crianças borbulhavam horas após horas, nesta festa infantil que dura a infância inteira, nesse circo lúdico que ri de qualquer besteira. Nessa urgência de vida, como se a eras esperassem pelas brincadeiras. Colocadas na cama devidamente banhadas, alimentadas, beijadas, encantadas e embaladas por contos e cantos, ainda assim resistiam bravamente à urgência do sono. Foi necessário contê-las. Feito assim um laço de abraço e no seu calor sussurrar ao pé do ouvido, avisando aos pequeninos que o dia fora longo e que aquele corpinho precisava também de descanso. Precisava dormir. Dormir e crescer.
Mas no anseio infantil de viver e correr e saber, nem sequer perceberam que à horas o sr. Sono batia na janelinhas das pestanas anunciando sua chegada, que ele tinha hora marcada e que o mundo dos sonhos também precisava delas para sobreviver. Então bastou um recostar de cabeças ao travesseiro para a mágica acontecer. Atendendo ao seu chamado, dormiram um soninho tão puro e profundo de fazer silenciar o mundo... esse mundo.
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VENTANIA

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Esta noite, um vento repentino, meio fora de rota entrou sem bater na porta e agitou meu quarto inteiro. Cantarolou ao pé do meu ouvido, gelou meu travesseiro, despenteou meus cabelos, despertou móveis e objetos queridos, engilhou meu vestido, umedeceu meu par de sapatos e saiu com forte zunido fazendo a curva no meu umbigo. E saiu tão ligeiro, tão ligeiro...que não tive tempo...
Tempo de lhe dizer que a sua visita me acordou de um pesadelo. Que assanhados meus cabelos, curtiram o embaraço e brincaram de abraços. Guarda-roupas, escrivaninha, penteadeira, livros e bijouterias, sentiram-se acariciados. Meu travesseiro gelado, só pediu um abraço apertado. Meu vestido engilhado, estava mesmo acalorado e sentiu-se bem melhor, obrigado. Meus sapatos umedecidos, soltaram uns poucos espirros, mas com isso espanou a poeira que dormia tranquila e desavisada na sua fivela cromada. E aquela curva no umbigo? Ah! fez cosquinha achei graça! Foi manobra de dar inveja a esquadrilha da fumaça!
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ps:
ah! e não pensem que a poeirinha virou uma sem-teto. Pegou carona com vento e voou sorrateira pra fixar moradia em uma fresta entre os livros e penteadeira.
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O EDIFÍCIO

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Assim como a minha plantinha que se encontra no vaso sobre a mesa da sala, o edifício é também uma planta e precisa ser regado para crescer. Acho que ele é de uma espécie gigante, bem exagerada, mas que nasce como toda planta grande ou pequena, de uma planta apenas. E como tal, teve que ser plantado e ser cuidado para daí crescer e se tornar essa árvore de concreto que brotou diante da minha janela, diante dos meus olhos impressionados a cada manhã. De tão alto, esse prédio já passou da altura dos olhos do pé de manga, do pé de goiaba, da laranjeira e dos ipês amarelos do Niemar. Agora todos os pés disso ou daquilo, têm de erguer bem o seu olhar pra conseguir ver o topo desse pé de apartamentos. E é lá nesse topo que agora já se vê um vaga-lume de estranha luz vermelha, - comentam as árvores cismadas. Mas elas sabem, assim ouviram dizer, que esse bichinho pontual, mesmo nas noites mais frias e escuras, se dedica a missão de avisar aos aviões que naquela árvore desengonçada de galhos simétricos e folhas duras reluzentes, não pousam apenas os pássaros, mas repousa um punhado de gente, muita gente.
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INERCIA

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Vi um olhar tão triste, vestido de trapos, recoberto por tempo e poeira, que me cortou por dentro e fundo. E era tão cheio de dor e indiferença que a minha presença, passou como os tantos que passavam e não fazia diferença. Era tanto abandono, que lhe pesava sobre os ombros já encurvados. Era tanto abandono transitando ao seu redor, que também se abandonou e pareceu-me que foi abandonando aqui e ali algum sorriso, esperança, qualquer sonho de criança ou qualquer ilusão de gente crescida. E sentada ali no meio fio, coberta pelo infinito e cercada por seus limites e pela limitação da multidão que a cercava, onde eu estava... passiva assistia a marcha dos fortes. Eu não tive coragem de dizer palavra, de entregar sorriso, de agir...de agir... eu apenas olhei, sofri e parti. Então eu quis colocar no papel, aquele olhar caído, aquele semblante perdido e encontrado entre os farrapos do seu vestido. Mas será que tenho esse direito, de roubar daquela tristeza imensa algumas palavras rasas, sem a devida profundidade, sem conhecimento de causa, sem envolvimento de almas... sem nada... sem nada de mim ter doado? Será que é certo do sofrimento alheio tecer um texto, buscar pretexto de inspiração? Senti vergonha, por ser mais uma no mundo a só querer tirar proveito daquela vida, que nada parecia ter, além daquele olhar perdido que até doía. Senti vergonha de mim mais uma vez e rasguei o poema. Rasquei o poema e saí de cena. Saí de cena pra depois voltar e pensar, e pensar se tem alguma valia imprimir a dor com a tinta fria e ineficaz, se alguma palavra escrita pode perpetuar na mente um drama tão comum e desumano para quem sabe um dia, diante da mesma cena, não dar nem sequer um passo adiante sem antes reagir e agir, e fazer o que for possível, e não deixar que o espanto faça negar um sorriso, e ver que por mais profundo que seja o poço do abandono, um pequeno gesto carregue consigo o poder de amenizar a penúnria e quem sabe derrame um pouco de esperança sobre a tristeza diminuindo a distância entre o fundo, o profundo e a superfície. Superficial, talvez. Mas com certeza o fim da inércia e o início de uma grande tarefa.
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VALE

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do pouco que vivemos e do muito que aprendemos amor, hoje eu sei... para quem tanto caminhou, vale mais uma légua. Pra quem riu e chorou, vale mais a trégua. A despedida é sempre o caminho mais fácil, desistir é porta sempre aberta. Juntar as peças leva uma vida, caminho mais duro que a despedida. E sabe, amor... tem tanto amor nesse meu peito, tem tanto amor em nosso leito de vida e ternura e há tanta ternura em teu olhar que me alcança por dentro e cura toda sombra banal da amargura. Por isso vale cada passo, cada légua, cada gargalhada e também a lágrima. Vale a cumplicidade da entrega, vale a tentativa diária de encaixar as peças e a decisão renovada na essência de desistir de qualquer desistência.
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