A vida dos dinossauros coloridos era a alegria do bebê que os amava, e o seu mundo, a banheira cheia de água morna. Seu apogeu e esplendor era a hora do banho. É que os dinossauros na verdade eram todos seres aquáticos e sabiam fazer mil piruetas nesse mar sem sal, mas cheio de espumas de shampoo, que não agride os olhinhos do bebê, como cuidadosamente descrito na embalagem. E o menino não tomava seu banho matinal sem a companhia de seus amigos. Há uma coisa importante de se dizer, sobre os homens, tão sem imaginação, com seu olhar rígido e sério, inventaram nomes para os dinossauros que eles não gostaram nem um pouco. Então, Tiranossauro Rex, Rex Diplodocus, Velociraptor , Pteranodon, Elasmosaurus e Brachiosaurus são os nomes difíceis que os homens difíceis inventaram. Mas só o menino lhes sabia o nome certo. E era simples assim como um carinho. Ele os chamava de Au-au. É por isso que eles, só atendem ao menino, que lhe sabe dizer os nomes direitinho.
Nesse ecossistema que o bebê tão bem administrava, havia funções diversas que os Au-aus cumpriam e não só por instinto, mas por amizade. Por exemplo, o Au-au verde lhe ajudava a coçar um tanto de dentes precoces que lhe nasciam de uma só vez, e lhe trazia algum sofrimento. O Au-au amarelo era o chefe do grupo, pois era o que o tinha a carinha mais sorridente. O Au-au verde-misturado, fazia mergulhos acrobáticos, desaparecendo no fundo da banheira para depois surgir na caverna das axilas para lhe arrancar muitas gargalhadas. E finalmente o Au-au Bege com lista azul, que tinha a função importante de entreter o menino ativo, assim disse o pediatra, enquanto a mamãe lhe trocava a fralda.
E o menino foi crescendo inteligente e ativo, como reiterou o pediatra. Então, descobriu logo cedo o segredo do enchimento do mar na banheira e principalmente o seu esvaziamento. E um dia o menino abriu as comportas desse oceano de carinho e pôs-se a brincar de abrir e fechar. Mas o que ele não esperava, é que a sua mãe, que nada entendia da era Mesozóica ou do período Cretáceo, de repente interrompesse o seu banho, levando-o para o trocador. Não, não foi o asteróide que fez dodói nos dinossauros. Foi a mamãe que deixou sem saber, o oceano derramando. O nível da água foi baixando, baixando, a espuma densa ficando por último e os Au-aus assustados e indefesos, nada puderam fazer.
Será que é assim mesmo? A medida que o homem, que também não passa de um menino ativo cresce e se desenvolve, de tanto descobrir e inventar coisas, se impressionou tanto com essas coisas, e brincou tanto com essas coisas que descuidou do mundo?
Mas mamãe com seu instinto materno, recolheu também sem saber, ainda a tempo, todos os Au-aus, lhes fez um carinho singelo e os colocou na bancada da pia para decorar o banheiro até a hora do próximo banho do menino.
E foi assim que eles se adaptam a um novo habitat.

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DE PONTA CABEÇA

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Se de repente eu amanhecer com o senso incomum aguçado? Deixo o comum em casa guardado e corro o risco do caminho contrário, mas seguindo sempre em frente.
E se eu fizer uma escultura com a pasta de dentes? E se eu for trabalhar de pijama? E ao invés do salto, a pantufa? Quem sabe uma divertida peruca.
E se, seguindo caminho, eu quiser passar em uma praça e ler com euforia em voz alta uma poesia? O que você diria?
E se ainda na praça, eu virar Maria cambota, só pra fazer sorrir o menino de botas ? E se eu imitar um camelo, pra alegrar a menina de olhar triste e cabelo vermelho? E se eu der um beijo no guarda de trânsito e fizer cócegas no carteiro?
E se eu plantar de uma vez três canteiros? Margarida, crisântemo e Adália.
E se na hora da fome, eu quiser ir a um restaurante bem chique, o que você aconselha? Eu iria a rigor, mas com coloridas meias. E se à mesa eu dispensar os talheres, pra meter a mão no prato e sugar o espaguete no ato, fazendo bico e dando corda na orelha? Como ensinou minha filha do meio. E se pra fechar o meu dia, eu quiser ir ao cinema assistir um romance fora de cartaz que eu amo demais e já assisti doze vezes ou mais, sempre com uma nova emoção? E se de tanta alegria ao fim da projeção eu cometer a ousadia de ficar em pé na poltrona e aos berros pedir bis, bis, bis !!?
Então me diz, o que você pensaria?, O que você diria? Que sou cafona, maluca ou feliz? É aí? Vai, me diz.



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ESCOLA CLASSE 37

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Da época de estudante, ensino fundamental, ficou a lembrança dos amigos queridos. Com isso vem a tona, alguns sentimentos gostosos de sentir. Alguns rostinhos, ficaram tão nítidos que dá vontade de dar um beijo de saudades. O tempo passa e os contados se perdem. Principalmente pra nós que nos mudamos tanto, em curtos espaços de tempo. Geralmente, havia um problema de família, por trás de tantas andanças.
Então fico imaginando como serão suas fisionomias hoje. Por isso é comum eu brincar sozinha de quem será. É mais ou menos assim: estes dias vi um policial, baixinho, meio barrigudo com cara de invocado, não tive dúvidas, pensei no Serginho. Outra vez, olhei pra uma moça muito simpática, com cara de amiga, sabe aquela cara de gente boa, lembrei da Ivonete, uma das minhas duas melhores amigas na época. A outra era a Geanne, dá até uma alegria escrever o nome delas. Tinham apelidos tão engraçados, mas eu não vou contar aqui, por conta da amizade. Não sei se elas ainda se importam com isso. Acredito que não, e talvez seja este um dos sintomas da maturidade. Fiquei sabendo que a Laudirene, agora é diretora de escola. Sei que deve estar pagando por todo o trabalho que deu pra Etiene, batendo nas meninas na saída do horário. Tem o Divino, que um dia apareceu em uma cidadezinha pra onde havíamos nos mudado. Foi um encontro caloroso. Ele me contou com vaidade adolescente que agora ouvia Ozzy Osborne e kizz. Aí eu pensei comigo, que o Divino, logo o Divino tava endemoniado! Ah, e tem o Luciano, esse era o meu pesadelo. Se vejo um jovem senhor magrelo, branquelo e sardento, examino-o. Discretamente, é claro.
O Luciano me perseguia, pegava no meu pé e encrespava com meu cabelo crespo. Todo dia era um apelido novo, e o último, nem pensem que vou falar, com esse, ele me torturava todos os dias um pouco. Agora aliso o cabelo, até que não fiquei mal. Não, não é por trauma que faço isso, é .... é ... é pra ganhar tempo. Mas na verdade; e eu sabia a verdade, é que o Luciano me amava. Amor de criança, amor moleque, mas me amava. Às vezes fazia-me algumas gentilezas e por vezes demonstrava ciúmes.

Quando eu tinha lá pelos meus dezessete anos, estava estagiando em uma empresa (na verdade eu já era contratada, mas eu sempre quis dizer que estava estava estagiando, acho chic! hahaha! pronto já me realizei) . O Serginho, me encontrou. Eu não me lembro bem como reagi, mas creio que foi com euforia. Ele deu o telefone da empresa pro Luciano, que me ligou em pouco tempo. Parabenizou-me pelo que eu estava fazendo, disse coisas boas e ainda que me admirava. Agora eu só lembro, que na hora, me senti bem com aquela ligação e aí pensei: num disse! num disse que ele me amava! E fiquei me sentindo muito especial. Até que pensei depois que talvez não fosse nada disso. Agora ele já rapazinho e um tanto mais humano, quis ser simpático, provavelmente para aliviar o peso de consciência por ter-me feito sofrer tanto.
Mas o fato, é que sinto saudades de uma época tão boa, desses e tantos outros amigos que guardo na memória, que tenho na minha história. Se um dia na brincadeira, nessa minha brincadeira, acontecer de eu acertar e reencontrar um desses queridos, peço a Deus que seja um encontro tão feliz e festivo, quanto feliz é a minha saudade. Mas sem apelidos. É meu sintoma contrário da maturidade. Mas isso, já é um outro assunt0.


SOBRE AS FIGURAS ESCONDIDAS

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Tenho de criança uma mania, ver figuras ou cenas onde ninguém as vê. Só eu mesma. Assim como nas brincadeiras de ver os carneirinhos nas nuvens. Até hoje gosto disso e me encanta as possibilidades. Mas na verdade, não me esforço para vê-las, é tão rápido, bato o olho em um objeto com algum tipo de mancha ou estampa ou qualquer coisa com formato não muito definido, e pronto, de repente de lá extraio uma imagem.
Hoje eu estava tomando banho e o vapor dágua criou uma forma no box do banheiro, na verdade era uma cena: Havia um velho bizarro com cabelo arrepiado, um queixo imenso afilado e um nariz prolongado e pontudo, como se fosse um bruxo. Com a boca enorme aberta segurava em suas mãos um cachorrinho poodle. O bichinho estava em pânico, pois o velho com seus dentes afiados estava por um triz de devorá-lo. Fiquei chateada com aquele velho malvado, se tava mesmo com fome que fosse comer macarrão, e não o pobre de um cão. Aí não tive dúvidas, precisava fazer algo. Então armei-me com a mangueirinha do chuveiro, que tem como esguicho o peixinho rosa que o Generson presenteou a Lulu. Preparei, apontei e fogo, digo, água na cara daquele velhinho perverso. Só que meu salvamento, não deu nada certo. O jato de água foi grande, no que desintegrei o bruxo, lá se foi também o cachorrinho poodle. Fiquei quase triste e fim.

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SOBRE O MÉTODO II

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Não, absolutamente não sou contra o método. Na verdade é o oposto, eu amo o método que me aponta caminhos mais planos e diversos. Mas, porque amo música, nem assim sei cantar. Não me dou muito com os muito metódicos, talvez, pela minha natureza caótica. Se bem, que meu caos tem lá a sua ordem. Mas qualquer ordem, por mínima que seja, denuncia o meu caos. Às vezes confundo método com rotina, porque eu também amo a rotina. Há os que tem pavor, eu não, eu a celebro, pois com ela sinto-me segura. Segura e feliz, principalmente quando bem estabelecida e produtiva. Essa palavra produção é meio que uma compulsão na minha vida. Não que eu seja muito produtiva, mas é que ela ecoa forte até quando não sou nada produtiva. Conheço pessoas metódicas pouco produtivas.
Tenho minha rotina, e nela incluo minha prece diária. Contudo, sempre procuro ter o plano B engatilhado, caso a rotina não se cumpra, o que me frustra bastante, e irremediavelmente, lança o meu dia a reveria.
Assim concluo que, talvez o meu caos esteja mais ligado as minhas gavetas, cacarecos e minha bolsa, meu Deus! minha bolsa... Por falar em bagunça, acho que essa é a palavra mais honesta, lembrei-me de uma situação de morte, em que se procurava os documentos necessários ao sepultamento, ouvi um comentário: puxa fulana era muito desorganizada! Meu pai Eterno, fiquei chocada! Agora sempre me preocupo com a minha forma badernada de ser. Mas continuando, sei que tenho uma ordem interna bem estabelecida. Sinto isto, em momentos de crise. Parece que consigo ser mais tolerante e razoável diante de questões difíceis, que outras pessoas. Parece também, que por ter contato com o caos, consigo apegar-me a menor possibilidade de ordem, assim tenho esperança. Embora com pouco método, a minha rotina possível dentro do caos me orienta.
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SOBRE O MÉTODO I

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Assunto recorrente pra mim é o tarefas por fazer. Não me queixo das tarefas. Não poderia agir assim, pois os afazeres quase sempre estão relacionados a questões tão importantes da nossa vida, como família, seu cuidado, manutenção, desenvolvimento, aconchego, lazer e até mesmo carinho. Então, não dá pra reclamar das tarefas, seria murmurar contra a felicidade.
O que me queixo mesmo, é da falta de tempo para atender a tantas necessidades. Da maratona louca, que não permite desfrutar com mais calma da companhia das pessoas que amamos.
Uma conhecida me disse, que o Ainstein disse, que a falta de tempo é argumento dos que não possuem método. Quase que um tabefe na cara uma frase dessa meu Deus do céu! Mas fico cá pensando com meus botões qual foi o cálculo matemático que nosso amiguinho usou para chegar a essa sentença, quais foram as variáveis envolvidas nessa equação. Acredito que não incluiu aí, algumas questões cotidianas como as minhas. Claro que vou exigir que a minha rotina seja considerada em tal equação. Porque considero-me uma genuína representante de uma geração que vou chamar aqui de geração S. É que já temos a geração X, Y, Z, W, então agora inauguro a geração S, de Sim. Vou explicar: trata-se de milhares de mulheres como eu, que ainda princesas encontraram aquele príncipe encantado quase perfeito, sem cavalo branco, mas com tanto amor pra dar que não poderiam esperar muito tempo para viverem o felizes pra sempre. Então, casaram-se e foram viver a vida real, com toda a realeza que suas possibilidades permitissem. Assim é que fomos automaticamente promovidas a rainhas do lar, nossos príncipes a reis, os príncipes herdeiros vieram e a administração do reino exigiu todo o tempo e finanças existentes. É nesse contexto, que mulheres como eu, adiaram por anos aquele sonho de formar-se, ter uma carreira, enfim de realizar-se profissionalmente. E agora cá estamos nós, nos virando nos trinta, nos quarenta e até mesmo cinquenta ou mais, se é que me entendem, em busca desse sonho. Só que abraçar sonhos agora, a estas alturas, exige alta dose de realidade e esforço. Uma verdadeira equação matemática, na qual a propriedade comutativa não é aceita, porque a ordem dos fatores, altera completamente os resultados. Uma coisa é conquistar sua formação acadêmica e depois constituir família e outra é o contrário.
Ainstein, sábio que era, saberia criar uma fórmula para equacionar bem essas questões, mas teria que explicar bonitinho em seus apontamentos, como não faltar tempo, quando se somam em uma mesma jornada os papéis diversos que uma mulher desempenha, e no meu caso, insisto: a mãe de três, a esposa do rei , a mulher moderna, a trabalhadora, a auxiliadora pedagógica, psicóloga, a enfermeira, a governanta, gerente de compras, a promoter e encaixando nas brechas até com certo peso de consciência, a estudante. Dadas as variáveis, não iria estranhar se esse gênio, com os seus cabelos ainda mais eriçados admitisse, que o tempo é curto e o método um luxo.
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SOB CONTROLE ENFIM

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Só pra finalizar. Creio que transferir para um objeto inanimado, o amor e apreço que poderíamos dedicar a um ser humano, é bem uma característica dos nossos tempos. Tempo em que a comunicação se expandiu tanto e temos tantos amigos virtuais, que perdemos a virtude do contato. A intimidade mingua quando relacionamos em escala de multidão. Então, é mais fácil ter intimidade com as coisas que nos rodeiam mesmo. Por exemplo, eu converso com um blog, pode!? Pode. Eu falo e penso que ele responde e então continuo esse diálogo-monólogo, meio que terapêutico. Há tempos, há os que conversam com seus próprios botões, há os que conversam pelos cotovelos e os que respondem boa noite pro William Bonner e pra Fátima Bernardes. Há também os que conversam com seus cachorros e juram sinceramente a capacidade de traduzir os latidos. Minha melhor amiga, queixou-se um dia das impossibilidades do tempo e da amizade. Agora ela conversa demoradamente com seus livros de psicologia e comportamento. E eu fico a invejar-lhe por uma saída tão intelectual. Saída pálida de quem falhou.
E principalmente, há quase todos nós, que quando estamos aflitos e solitários, conversamos com Deus em orações e súplicas. E este sim, embora não o vejamos, temos a certeza que nos ouve prontamente.
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SOB CONTROLE III

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E por falar em nostalgia, e ainda falando do meu querido controle remoto, hoje esbarrei a mão e sem querer fui parar na MTV, e estranho... não havia nenhuma diva louca, seminua ou alcoolizada ou seminua e alcoolizada. Estava cantando um negro que até então eu não conhecia e agora não recordo o nome, depois vou ver, com uma voz belíssima e fazendo um som incrível. Fiquei tão feliz cá dentro e curti aquela música como o pessoal da platéia estava curtindo, assim como um momento muito especial. Acho que não só eu me apeguei ao controle. Ele também se apegou a mim. É desta forma que explico que na verdade não fui eu quem esbarrou nele, foi ele quem deliberadamente apontou o norte e quis dar-me esse presente em forma de música. Acredito que foi essa mesma música que desencadeou em mim uma nostalgia meio fujona. Tive uma vontade boba de estar em um shopping... qualquer um... Não, talvez o Park Shoping não fosse uma boa opção. Quem sabe o Terraço, que é tão mais tranquilo. Lá eu gostaria de assentar-me calmamente em um café que fica próximo à praça central, onde os pais levam as crianças pra brincar. Então, pediria um refrigerante tipo cola com limão e leria com imensa ternura alguma coisa do Neruda. Assim, me sentiria um pouco participante de um tempo e um mundo que há muito não tenho mais. E nessa minha visão, minha vida estaria de tal forma bem organizada, que eu não precisaria ficar aflita olhando para o relógio e correndo com tantas coisas ainda por fazer. E não me perdoaria sair sem comprar um Coldplay. Eu sei que é bem atual, mas é que me recorda uma saudade feliz de muita coisa que ainda não fiz, mas sonho muito em fazer.

Mas por fim, talvez tudo isso seja mesmo só reflexo de uma semana que foi pedreira: o Generson fez uma pequena cirurgia, o Dan fez sinusite, a Louise otite e a Camile rinite. Eu quase fiz enfermagem. Mas graças a Deus está tudo bem. Amém.



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SOB CONTROLE II

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Não, isso de se apegar a um controle remoto sobrevivente de um grave acidente, definitivamente não é loucura nem carência. Se não me engano, é assim mesmo que as pessoas normais agem. No decorrer da vida vão se apegando a coisas. Vão amando e se comprometendo a ponto de sacrificar tempo e espaço a fim de preservá-las. Sim, eu sei bem que pessoas são mais importantes que coisas. É que estou aqui me referindo ao cuidado, zelo e carinho que temos por alguns objetos que guardam na mais pura essência de ser inanimado, fraguimentos da nossa história, lembranças de pessoas queridas ou momentos importantes em nossas vidas. Guardo uma jarra de porcelana que lembra minha mãe e como ela gostava de enfeitar a casa. Comprei um cd do Balão Mágico de mil novecentos e antigamente por pura nostalgia, por me fazer lembrar de bons momentos da infância e até mesmo para copiar o gesto de minha mãe quando na época comprou um LP pra nós. Assim, vou compreendendo o que nunca havia entendido, porque algumas vovós tem na cristaleira louças que não permitem que sejam usadas nunca, jamais! Acho que é para não apagar preciosas lembranças quando forem lavadas. Dá também pra entender aquele vestido fora de moda, que se insiste em usar, porque o prazer a que se remete vale o desdém dos que não perdoam um erro de escolha. Ah, e não se pode deixar de falar também nos cheiros, nos perfumes e sua capacidade insuperável de despertar em instantes a mais remota das lembranças. E o que mais impressiona é que dependendo do cheiro, pode nos aguçar tanto a memória a ponto de lembrarmos com riqueza de detalhes, sentimentos a muito perdidos no tempo. Cheiro de boneca nova!! Meu Deus, que alegria! Como não ficar feliz e lembrar o quanto a vida é bela e generosa quando se sente um cheiro de boneca nova. Lembro-me de um natal que não havia a menor chance de ganhar presente. Mesmo muito criança eu já sabia. E é assim mesmo quando não se tem. Agente não tem, sabe e fica quieto, não dá chilique, não entra em depressão, a gente passa a compreender mais do que questionar. Mas incrível é que no dia de natal, minha mãe mandou a gente dá uma olhada em baixo da cama. De uma forma que eu nunca soube como foi, haviam pacotes de presentes para cada um dos seis filhos. Eram caminhõezinhos de plástico recheados com balinhas! Foi um dos momentos mais felizes da minha infância.
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SOB CONTROLE

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Observo da minha janela o mundo recortado em losâgulos. Em cada ângulo uma vida e uma avenida extensa a ser percorrida até a estação do metrô. Do segundo andar, vejo as pessoas cumprindo suas rotinas de vindas e idas. E é assim meia que voando em pensamentos que retorno à terra firme automaticamente chamando atenção do Daniel, que tenta mais uma vez jogar pela fresta da rede de proteção da janela, um par de meias. Sim, mais uma vez, porque de outra feita, foi pela mesma fresta que ele tão rapidamente conseguiu jogar o controle da TV, que não foi possível impedi-lo. Sem chances o controle despedaçou-se lá embaixo. Além da queda, ficou submerso em uma possa d´gua acumulada no piso térreo. Então o bichinho, falo assim, porque acho que ele, o controle, reagiu feito um ser vivente, pois assim que foi salvo do total afogamento e tendo sido montado parte por parte, tentou reagir e deu sinal de vida funcionando por alguns instantes. Mas o acidente fora grave e o trauma grande. Então nos primeiros dias pós acidente, nem adiantava pedir-lhe a gentileza de mudar de canal ou elevar e abaixar volume. Não, nada. Assim nos foi exigido o esforço incomum em nossos dias, de desgrudar as nádegas do sofá, caminhar em direção à TV e manualmente realizar as transições desejadas.
Mas como ia dizendo, foi assim, feito gente ferida que o controle foi reagindo aos poucos, bem quietinho na estante. Depois de alguns dias de convalescença, teve sua saúde, digo, circuitos plenamente recuperados, voltando à ativa.
Nossa! Que bom que ele sobreviveu! Bom pra ele que parece muito feliz executando suas funções como nunca. Sei disso, porque agora presto mais atenção. O amor também se dá pela convivência e pela experiência é que me vejo apegada a ele com carinho. Bom para o bolso, diz meu esposo. Bom pra nós que voltamos à rotina da preguiça. Digo nós, mas no fundo no fundo, sei que há a exceção da bunda, que não gostou nada da ressurreição do controle remoto. Sim, porque agora dificilmente terá a chance de fazer aquela caminhada refrescante entre o sofá e a estante.
Quanto as vidas e suas rotinas de idas e vindas... o que pode ser mais interessante e profundo quanto um menininho curioso ao seu modo, descobrindo o mundo?
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SEI II

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o que acho estranho é conhecer tão pouco da pessoa com quem mais convivo, essa que sou eu mesma. Então, vou listando alguma coisa até mesmo a fim de forçar um pouco a amizade, para quem sabe um dia possa conhecer-me de verdade:
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O QUE SEI - LISTA Nº 01 - sei que, ora flutuo, ora afundo. Ora sou ponte, ora abismo. Ora uma bússola, outra a deriva. Ora me dou, ora cobro. Ora sou pouco, ora sobro. Ora colorida, outra monocromática. Ora bem humorada, em outra dramática. Ora dou o braço a torcer, outra torço o nariz. Ora sou triste, mas quase sempre sou feliz.
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O QUE NÃO SEI - LISTA Nº 02 - não sei...O
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DESAFORO

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Acho que não tenho vocação pra brigar e esbravejar com as pessoas e dizer desaforos. Sim, porque me acontece vez ou outra de admirar quem não os leve pra casa. Mas definitivamente não sou dessas. Pois se acontece de eu dizer alguma crueldade que seja, torno-me eu mesma, minha maior acusadora perpétua.
De criança tenho um grande defeito de querer que tudo fique bem o tempo todo. Mas assim não seria humano. As pessoas erram, se estressam, contestam e perdem as estribeiras. Assim como também se acalmam, voltam a trás e pedem desculpas, ou não. Mas o fato é que mesmo adulta, sofro ainda muito desse tipo de conduta. Não é que eu seja fraca, muito menos covarde. Se tem algo que dou muito valor é encarar a realidade de frente. Nem tão pouco que seja o caso de ser santa ou boba. Sim, porque já desci dos tamancos e fui ladeira abaixo. Mas é que sempre sinto que não vale a pena o descaso, só pra ostentar o sorriso arrogante dos bons de boca, dos língua afiada.
Isso de dar resposta atravessada, de bater-boca e ficar ou fazer alguém magoado, a imagem que me vem é de devastação, cenário típico da guerra, onde vencer é sinônimo de derrotar, e isso implica em comemorar os feridos que se deixa pelo caminho.
Mas o meu anjo bom que vence quase todos os meus embates, lembra-me como é reconfortante não atear fogo ao pavio só por orgulho, disputa ou contenda e que não vale a pena ferir, se é com humildade que viemos ao mundo, e da mesma forma um dia teremos que nos despedir.
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