SEI

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Vivo a escrever coisas do meu umbigo, coisas simples, coisas minhas, coisas tortas... embora algumas vezes lançando o olhar além da minha órbita, diria que, o que escrevo toca outros mundos, outros caminhos, diferentes rotas.
Sei, aqui e ali tropeço, sei que não há genialidade nos meus versos, são apenas suspiros impressos. Sim, eu sei que transgrido e peco, mas essa minha escrita capenga, equilibra os meus temas e por vezes lança luz sobre alguns dilemas.
Escrevendo sigo me conhecendo e reconhecendo a cada linha, cada parágrafo, cada página. Então de maneira intensa e ávida, sinto e sei de forma cada vez mais clara, que tenho impresso no meu ser algo a me conduzir feito uma dança. Talvez essa ânsia secular, que se agarra a qualquer fio condutor de esperança.
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HORA DE DORMIR

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As crianças borbulhavam horas após horas, nesta festa infantil que dura a infância inteira, nesse circo lúdico que ri de qualquer besteira. Nessa urgência de vida, como se a eras esperassem pelas brincadeiras. Colocadas na cama devidamente banhadas, alimentadas, beijadas, encantadas e embaladas por contos e cantos, ainda assim resistiam bravamente à urgência do sono. Foi necessário contê-las. Feito assim um laço de abraço e no seu calor sussurrar ao pé do ouvido, avisando aos pequeninos que o dia fora longo e que aquele corpinho precisava também de descanso. Precisava dormir. Dormir e crescer.
Mas no anseio infantil de viver e correr e saber, nem sequer perceberam que à horas o sr. Sono batia na janelinhas das pestanas anunciando sua chegada, que ele tinha hora marcada e que o mundo dos sonhos também precisava delas para sobreviver. Então bastou um recostar de cabeças ao travesseiro para a mágica acontecer. Atendendo ao seu chamado, dormiram um soninho tão puro e profundo de fazer silenciar o mundo... esse mundo.
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VENTANIA

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Esta noite, um vento repentino, meio fora de rota entrou sem bater na porta e agitou meu quarto inteiro. Cantarolou ao pé do meu ouvido, gelou meu travesseiro, despenteou meus cabelos, despertou móveis e objetos queridos, engilhou meu vestido, umedeceu meu par de sapatos e saiu com forte zunido fazendo a curva no meu umbigo. E saiu tão ligeiro, tão ligeiro...que não tive tempo...
Tempo de lhe dizer que a sua visita me acordou de um pesadelo. Que assanhados meus cabelos, curtiram o embaraço e brincaram de abraços. Guarda-roupas, escrivaninha, penteadeira, livros e bijouterias, sentiram-se acariciados. Meu travesseiro gelado, só pediu um abraço apertado. Meu vestido engilhado, estava mesmo acalorado e sentiu-se bem melhor, obrigado. Meus sapatos umedecidos, soltaram uns poucos espirros, mas com isso espanou a poeira que dormia tranquila e desavisada na sua fivela cromada. E aquela curva no umbigo? Ah! fez cosquinha achei graça! Foi manobra de dar inveja a esquadrilha da fumaça!
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ps:
ah! e não pensem que a poeirinha virou uma sem-teto. Pegou carona com vento e voou sorrateira pra fixar moradia em uma fresta entre os livros e penteadeira.
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O EDIFÍCIO

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Assim como a minha plantinha que se encontra no vaso sobre a mesa da sala, o edifício é também uma planta e precisa ser regado para crescer. Acho que ele é de uma espécie gigante, bem exagerada, mas que nasce como toda planta grande ou pequena, de uma planta apenas. E como tal, teve que ser plantado e ser cuidado para daí crescer e se tornar essa árvore de concreto que brotou diante da minha janela, diante dos meus olhos impressionados a cada manhã. De tão alto, esse prédio já passou da altura dos olhos do pé de manga, do pé de goiaba, da laranjeira e dos ipês amarelos do Niemar. Agora todos os pés disso ou daquilo, têm de erguer bem o seu olhar pra conseguir ver o topo desse pé de apartamentos. E é lá nesse topo que agora já se vê um vaga-lume de estranha luz vermelha, - comentam as árvores cismadas. Mas elas sabem, assim ouviram dizer, que esse bichinho pontual, mesmo nas noites mais frias e escuras, se dedica a missão de avisar aos aviões que naquela árvore desengonçada de galhos simétricos e folhas duras reluzentes, não pousam apenas os pássaros, mas repousa um punhado de gente, muita gente.
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INERCIA

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Vi um olhar tão triste, vestido de trapos, recoberto por tempo e poeira, que me cortou por dentro e fundo. E era tão cheio de dor e indiferença que a minha presença, passou como os tantos que passavam e não fazia diferença. Era tanto abandono, que lhe pesava sobre os ombros já encurvados. Era tanto abandono transitando ao seu redor, que também se abandonou e pareceu-me que foi abandonando aqui e ali algum sorriso, esperança, qualquer sonho de criança ou qualquer ilusão de gente crescida. E sentada ali no meio fio, coberta pelo infinito e cercada por seus limites e pela limitação da multidão que a cercava, onde eu estava... passiva assistia a marcha dos fortes. Eu não tive coragem de dizer palavra, de entregar sorriso, de agir...de agir... eu apenas olhei, sofri e parti. Então eu quis colocar no papel, aquele olhar caído, aquele semblante perdido e encontrado entre os farrapos do seu vestido. Mas será que tenho esse direito, de roubar daquela tristeza imensa algumas palavras rasas, sem a devida profundidade, sem conhecimento de causa, sem envolvimento de almas... sem nada... sem nada de mim ter doado? Será que é certo do sofrimento alheio tecer um texto, buscar pretexto de inspiração? Senti vergonha, por ser mais uma no mundo a só querer tirar proveito daquela vida, que nada parecia ter, além daquele olhar perdido que até doía. Senti vergonha de mim mais uma vez e rasguei o poema. Rasquei o poema e saí de cena. Saí de cena pra depois voltar e pensar, e pensar se tem alguma valia imprimir a dor com a tinta fria e ineficaz, se alguma palavra escrita pode perpetuar na mente um drama tão comum e desumano para quem sabe um dia, diante da mesma cena, não dar nem sequer um passo adiante sem antes reagir e agir, e fazer o que for possível, e não deixar que o espanto faça negar um sorriso, e ver que por mais profundo que seja o poço do abandono, um pequeno gesto carregue consigo o poder de amenizar a penúnria e quem sabe derrame um pouco de esperança sobre a tristeza diminuindo a distância entre o fundo, o profundo e a superfície. Superficial, talvez. Mas com certeza o fim da inércia e o início de uma grande tarefa.
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VALE

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do pouco que vivemos e do muito que aprendemos amor, hoje eu sei... para quem tanto caminhou, vale mais uma légua. Pra quem riu e chorou, vale mais a trégua. A despedida é sempre o caminho mais fácil, desistir é porta sempre aberta. Juntar as peças leva uma vida, caminho mais duro que a despedida. E sabe, amor... tem tanto amor nesse meu peito, tem tanto amor em nosso leito de vida e ternura e há tanta ternura em teu olhar que me alcança por dentro e cura toda sombra banal da amargura. Por isso vale cada passo, cada légua, cada gargalhada e também a lágrima. Vale a cumplicidade da entrega, vale a tentativa diária de encaixar as peças e a decisão renovada na essência de desistir de qualquer desistência.
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