INERCIA

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Vi um olhar tão triste, vestido de trapos, recoberto por tempo e poeira, que me cortou por dentro e fundo. E era tão cheio de dor e indiferença que a minha presença, passou como os tantos que passavam e não fazia diferença. Era tanto abandono, que lhe pesava sobre os ombros já encurvados. Era tanto abandono transitando ao seu redor, que também se abandonou e pareceu-me que foi abandonando aqui e ali algum sorriso, esperança, qualquer sonho de criança ou qualquer ilusão de gente crescida. E sentada ali no meio fio, coberta pelo infinito e cercada por seus limites e pela limitação da multidão que a cercava, onde eu estava... passiva assistia a marcha dos fortes. Eu não tive coragem de dizer palavra, de entregar sorriso, de agir...de agir... eu apenas olhei, sofri e parti. Então eu quis colocar no papel, aquele olhar caído, aquele semblante perdido e encontrado entre os farrapos do seu vestido. Mas será que tenho esse direito, de roubar daquela tristeza imensa algumas palavras rasas, sem a devida profundidade, sem conhecimento de causa, sem envolvimento de almas... sem nada... sem nada de mim ter doado? Será que é certo do sofrimento alheio tecer um texto, buscar pretexto de inspiração? Senti vergonha, por ser mais uma no mundo a só querer tirar proveito daquela vida, que nada parecia ter, além daquele olhar perdido que até doía. Senti vergonha de mim mais uma vez e rasguei o poema. Rasquei o poema e saí de cena. Saí de cena pra depois voltar e pensar, e pensar se tem alguma valia imprimir a dor com a tinta fria e ineficaz, se alguma palavra escrita pode perpetuar na mente um drama tão comum e desumano para quem sabe um dia, diante da mesma cena, não dar nem sequer um passo adiante sem antes reagir e agir, e fazer o que for possível, e não deixar que o espanto faça negar um sorriso, e ver que por mais profundo que seja o poço do abandono, um pequeno gesto carregue consigo o poder de amenizar a penúnria e quem sabe derrame um pouco de esperança sobre a tristeza diminuindo a distância entre o fundo, o profundo e a superfície. Superficial, talvez. Mas com certeza o fim da inércia e o início de uma grande tarefa.
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